Tudo tem um fim (exceto, como escreveu um poeta da grande tela, as salsichas, que têm dois). O Linguado vai adormecer. Foi bom enquanto durou, etc.
Para um repositório das experiências dos meus heterónimos ArtDeCo, Augusto de Lima e Arthur C. Flounder, vou para o Perspetivas. Aí publicarei coisas novas e também republicarei os materiais que já aqui apareceram.
O que se passa num conclave? Quero dizer, que ambiente se vive lá dentro, entre os cardeais, os seus secretários, os padres e as freiras, os funcionários, etc?
É aquela coisa grave e séria que todos supomos que é, uma reunião de gente que sabe que, para milhões de pessoas, as suas decisões serão coisa muito importante? Terá a fábula de Nanni Moretti em "Habemus Papam" algum fundo de verdade, e a farsa é rainha? Mas o que sabe Moretti, que afinal é um comunista?
Eu imagino mais facilmente um grupo de executivos engravatadinhos do Banco Ambrosiano Veneto a fazer contas sobre despesas, receitas, yelds e bonds, enquanto os do Opus Dei conspiram, numa esquina esconsa ou numa rede social qualquer, contra o cardeal papabile de uma fação rival.
Lembrei-me disto porque o meu amigo Faria, visivelmente perturbado, me descreveu hoje de manhã um pesadelo que teve a noite passada.
Vou contar-vos o sonho, tentando recordar as suas próprias palavras, mas é claro que ele não me pode ouvir brincar com estas coisas. O Faria é um católico fervoroso e, embora seja homem muito bem humorado, há certas coisas que o tiram do sério. Peço-vos, por isso, a maior discrição.
2.
Estou no Vaticano, rodeado de altos dignitários da Igreja.
A certa altura, reparo que eu próprio sou um cardeal, porque alguém me segreda ao ouvido "Eminência, desta vez as suas hipóteses são muito grandes". Volto-me, mas apenas avisto um vulto encolhido, afastando-se com passos rápidos. Sei que sou o cardeal Cunhambebe Anchieta, brasileiro de ascendência Tupi.
Leio, na página 3, do L'Osservatore Romano que "talvez tenha chegado a hora de um Papa não europeu, vindo de um país do hemisfério sul, um representante das novas grandes nações católicas". Estou convencido de que sou eu: mestiço, indígena, brasileiro. No meu íntimo, sei que o Espírito Santo já me apontou.
Mas assalta-me uma dúvida angustiante de cada vez que fixo os olhos grandes de Francis, o cardeal africano. Todo ele é calma, tranquilidade, força. Será que é ele, e não eu, o escolhido?
Movo-me por entre homens vestidos de vermelho, de branco e de preto, com o coração oprimido. Escuto vozes que sussurram, surpreendo olhares oblíquos e vislumbro movimentos orgíacos por detrás das pesadas cortinas púrpura. Tudo se acelera à minha volta, mas eu consigo manter a calma e flutuo sobre as cabeças dos homens no salão. Tudo é contraditório e agitado e apenas eu estou no ritmo normal.
Eu e Francis, rodeado por uma música suave que parece sair das suas palavras e por uma luz doce que parece sair da sua pele negra. A dúvida assalta-me. Ele quer o lugar que é meu por direito divino. Ele é forte e puro, enquanto eu carrego comigo o pecado da mestiçagem. Todos olham para ele e ninguém repara em mim. Exceto Francis, que me olha com os olhos brilhantes.
Entro em pânico. 3.
Acordo sobressaltado. Mas não acordo do pesadelo, acordo no pesadelo.
Estou deitado numa ampla cama de dossel, num quarto de teto alto e paredes de pedra e madeira cobertas de tapeçarias.
Tive uma revelação. O meu sangue tupi mostra-me o caminho. Como os meus antepassados faziam, tenho que destruir Francis e comê-lo para que a sua força e a sua pureza passem a fazer parte de mim.
Saio do quarto com passos silenciosos sobre os tapetes macios. Amanhã, na sessão do conclave, as virtudes de Francis serão minhas. Os seus músculos, o seu espírito, a sua coragem, o seu rosto... tudo absorverei, seremos um só.
Vou parecer-me um pouco mais com Francis e esta mistura de sangues, esta miscigenação definitiva, criará o verdadeiro Escolhido, aquele que limpará a Igreja e trará uma Nova Era ao Mundo. Compreendo isto de forma muito clara.
Entro no quarto de Francis, sem acordar o guarda suíço que dorme num banco de madeira junto à sua porta. Aproximo-me da cama, guiado na escuridão pela sua respiração ritmada e por uma estranha claridade que rodeia o seu corpo. Debruço-me e, aspirando o aroma intenso e exótico que dele emana, estendo as mãos trémulas para o seu pescoço.
Ele abre os olhos e volta o rosto para mim.
Na última posta, dedicada a Cosey, falou-se aqui de haiku, uma forma poética japonesa muito concisa. Por instantes, imaginemos o que seria uma versão portuguesa de haiku...
Em primeiro lugar, teria uma designação mais de acordo com a nossa cultura brejeira e ensolarada. Haikeku seria, certamente, uma opção popular.
Em segundo lugar, onde os haiku são contemplativos e contidos, esboçando uma paisagem, uma sensação ou um sentimento, os haikeku seriam exuberantes, oscilando entre um lirismo palavroso e um pessimismo raivoso.
Vou tentar exemplificar, aproveitando para homenagear a figura do ano, eleito por unanimidade aqui pelo cardume: José Sócrates Pinto de Sousa. É verdade, ainda não nos saiu da memória...
O figurão do ano
Um haikeku que se preze tentaria, nos estreitos limites da sua forma sintética, traduzir muito mais do que uma ideia elementar. Tentaria meter o Mundo em meia dúzia de palavras:
Sonhei. Sócrates
Bebia Cicuta e Mexia
na Guta.
Enfim, Portugal todo está ali, só é preciso saber ler. Ah! a subtil insinuação da palavra "cicuta". Sugere o "outro" Sócrates e a filosofia, cujo estudo leva tantos jovens a emigrar mas, ao mesmo tempo, o desejo inconfessável de muitos portugueses quando pensam em JSPS. Ui!, o triângulo romântico, a insinuação maldosa e as figuras que simbolizam a decadência nacional: o político manhoso, o empresário vaidoso e o farol da nossa criatividade provinciana.
Alto lá, dirão alguns. Portugal quase todo, mas não todo. Onde está a corrupção, essa marca que, não sendo só nossa, é muito nossa? E logo se acrescenta um verso, em nome da nossa alma livre, que se está a marimbar para a forma:
Eu Sonhei.
Sócrates
Bebia Cicuta
Mexia na Guta
Comia da Truta
Não deixa de ser ainda subtil. Note-se que é preciso intuir que não está "robalo" porque não rimava nem entrava na métrica. Esclarecido isso, já conseguimos juntar o pequeno empresário chico-esperto e o omnipresente intermediário, reforçando ainda a ideia de que ninguém tem as mãos limpas e que não há fumo sem fogo! E, que se lixe, até ganhou uma forma mais sugestiva, quase um pinheirinho de Natal!
Trout in disguise
Ora para os portugueses a poesia é como a escalada da violência no Médio Oriente. Palavra puxa palavra, e logo vêm alguns dizer que o poema em construção é demasiado intelectual, elíptico, críptico até. Que é como o cinema português, onde nunca se consegue entender a história. E uma nova versão, revista e aumentada, começa a circular:
Eu
Sonhei.
Sócrates Pedia Labuta
Relia a Minuta Mexia na Guta Comia da Truta
Perdia a Batuta
Tremia à Bruta
Fugia da Luta
Bebia Cicuta
Esta versão é mais direta, mais narrativa e mais democrática, porque já pode ser compreendida pelas franjas da população menos letradas. Ri-se vingativamente do derrotado nas eleições legislativas de junho de 2011, goza com o seu gosto pelo show e pelo uso do teleponto e conta com satisfação alarve a sua perda de controlo e a sua queda. E quem disse que perdia a forma? Não começa a parecer o tal robalo (na versão interpretada pelos Homens da Luta) ou, ainda melhor, um supositório (na versão Quim Barreiros)?? (Risos! Risos!). Que se dane a poesia, o importante é que a malta se ria, como diriam os três pavores:
Graças a Deus temos a TV do Estado para nos fazer chegar a qualidade e o bom humor contagiante destas três gradas figuras da nossa cena mediática. Bem merecem os salários obesos que lhes pagamos! (Fotomontagem: AC)
Mas a coisa continua. E a juventude das ruas suburbanas, a geração perdida de Massamá, com o seu hip-hop e o seu rap freestyle, vai ficar sem absorver criticamente mais esta tendência do mainstream musical português? Ora! Já estou a ver a versão Sam The Kid (peço desculpa pela linguagem, mas já sabemos como são estes jovens!):
Eu Sonhei, iô!
Sócrates Vivia na Gruta
Sócrates Comia da Truta Enquanto Relia a Minuta, iô!
Sócrates Mexia na Guta, Lambia na Fruta, Perdia a Batuta.
Iô! Iô! Sonhei!
Sócrates Bebia Cicuta, Tremia à Bruta, Fodia na Puta!
Sonhei, iô!
Sócrates Bebia Cicuta, Pedia Labuta, Fugia da Luta!
Fugia da Luta
Sonhei, iô!
Sócrates Bebia Cicuta
Sócrates Bebia Cicuta, iô!
Bebia Cicuta!
Iô!
Finalmente, o haikeku perdeu a inocência, mais ou menos sofisticada. Talvez passe mesmo a chamar-se kaideku e, nas versões dos jovens das comunidades africanas, kaidekuduro. Nem é preciso falar da forma, que evoca a arma do Juízo Final.
Sam The Kid, de Marvila, pratica o Haiku-Rap no meio dos bambus. Mais oriental não há!
Que talento. Iô! Só faltava mesmo passar ao fado, mas essa cena é património da humanidade e não se pode mexer.
Um excelente Ano Novo! Em janeiro começa o Ano do Dragão. Até os comemos! Em meu nome e no do Samuel, aqui fica o clássico "Doping", que não podia ser mais apropriado. Sam The Kid ao lado do falecido Snake.